Oi.
Essa aqui é minha newsletter de recomendações. Toda semana, indico um filme e um disco que eu amo, entre hits e títulos menos conhecidos, para você de repente dar uma chance.
Aí vão as dicas!
Música
Sviatoslav Richter - J. S. Bach: The Well Tempered Clavier - Book I (1970)
Pianistas clássicos costumam ser personagens muito interessantes. Faz sentido, pensando que essa é uma profissão que exige muito talento, sensibilidade e inteligência, além de uma personalidade bastante obsessiva, o que faz com que muitos desses artistas sejam pessoas um tanto excêntricas e doidinhas. Inclusive, eles quase sempre dão ótimos artigos do wikipedia, com uma biografia cheia de conflitos, dramas, romances e idiossincrasias. Recomendo, por exemplo, o do Glenn Gould e o do Chopin. Ou então o documentário da Martha Argerich dirigido pela filha, disponível no YouTube.
Um cara que eu amo é o russo Sviatoslav Richter, considerado um dos melhores pianistas da história e detentor de um vasto repertório, que ia de Handel a Bartók, passando por Beethoven, Mozart, Schubert, Scriabin, Gershwin e outros, tipo aqueles sanfoneiros de cantina italiana que tocam O Sole Mio seguido de Asa Branca e My Heart Will Go On. Pra ser bem sincero, não tenho o conhecimento nem o repertório para dizer se ele é realmente um dos melhores pianistas da história ou não, embora eu certamente ache muito foda o som que ele tira do piano. Negócio de louco, mesmo.
De personalidade introspectiva e reclusa, Richter deu poucas entrevistas na vida e costumava se apresentar na penumbra, que era para ninguém se distrair da música. Mas ele também era uma pessoa de opiniões fortes, assertivas e profundas, especialmente quando o assunto era o piano, instrumento com o qual ele tinha uma relação íntima e obsessiva.
Para Richter, seu papel como músico era o de ser fiel à composição, sem deixar sua personalidade se sobressair a ela. Segundo o próprio, “o pianista não deve dominar a música, mas se dissolver nela”. Por isso mesmo, ao contrário dos outros pianistas da sua geração, que costumavam se apresentar em um poderoso Steinway, Richter preferia usar um piano Yamaha, instrumento considerado menor, de timbre mais insosso e sem charme. Seria como se o Picasso desenhasse só com caneta Bic, ou algo assim. Na visão de Richter, a mediocridade do Yamaha permitia com que ele expressasse melhor as intenções da partitura, sem que ela fosse ofuscada pela personalidade de um piano mais brilhante. Eu gosto do jeito que ele pensa! Acho bonito e instigante.
Infelizmente, Richter não gostava muito de gravar músicas em estúdio, de modo que a discografia dele é um tanto bagunçada e limitada. Contudo, quando ele gravava algo, Richter mergulhava de cabeça na parada, fazendo um take atrás do outro e, em alguns casos, executando todas as faixas numa só tacada, para não perder a espontaneidade. Entre as gravações que eu já ouvi dele, uma das que mais mexeram comigo foi sua interpretação do primeiro livro de O Cravo bem Temperado, obra de Johann Sebastian Bach.
Indicar O Cravo Bem Temperado é meio como sugerir que alguém ouça Thriller do Michael Jackson, ou leia, sei lá, a Bíblia. Uma dica, enfim, um pouco óbvia demais. Inclusive, a primeira peça da obra, o Prelúdio em Dó Maior, é talvez o maior hit da história da música clássica, junto com o PAM PAM PAM PAAAAM do Beethoven e o FOM FOM fomfomfom FOM FOM do Wagner (esse era a Cavalgada das Valquírias, pra quem não entendeu).
O Cravo Bem Temperado é uma composição que o Bach fez em 1722 para cravos e derivados, dado que o piano mal tinha sido inventado na época - não sei nem se o Bach sabia que pianos existiam quando ele escreveu esse troço. São 24 fugas e prelúdios pareados em todos os tons possíveis (maiores e menores), sendo o primeiro par em dó maior, o segundo em dó menor, o terceiro em dó sustenido maior e por aí vai, até o último par, em si menor.
Bach criou O Cravo Bem Temperado com um objetivo puramente didático, para que o estudante de teclado pudesse pratica-lo em casa. Contudo, as peças do livro eram tão bonitas e emocionantes que a galera começou a interpreta-las nos palcos. Imagina um manual de gramática escrito com tamanha poesia, que você começa a chorar enquanto aprende a fazer uma mesóclise? É meio isso!
O disco inteiro tem duas horas de duração, mas dá pra ouvir ele das mais variadas formas possíveis. Por exemplo, dá pra tocar um prelúdio e uma fuga por dia, logo ao acordar. Ou ouvir só os prelúdios. Ou só as fugas. Dá pra ouvir de trás pra frente, de frente pra trás. Ou ouvir suas favoritas no repeat. Uma das que eu mais gosto, por exemplo, é essa:
Filme
Coffy - Jack Hill (1973)
Esses meses fiquei assistindo a uns blaxploitations, gênero que eu adoro, mas que infelizmente não conheço tanto quanto eu gostaria. Aliás, se você tiver alguma dica pra dar nesse sentido, eu aceito. Quem sabe eu não gosto?
Nesse processo, acabei trombando com um delicioso clássico do gênero, chamado Coffy, de 1973. O filme conta a história de Flower Child Coffin (a.k.a. Coffy), uma enfermeira que resolve fazer justiça com as próprias mãos, depois que sua irmã se perde para o vício em heroína. Se disfarçando de garota de programa, Coffy infiltra o submundo do crime, enfrentando traficantes, policiais e políticos corruptos, com a ajuda de seu charme e uma espingarda de cano curto. Como uma boa obra de blaxploitation, Coffy é um filme com bastante ação, trilhas inesquecíveis, falas memoráveis e, claro, uma taxa altíssima de pagação de peitinho.
Interpretada pela lendária e feríssima Pam Grier, Coffy é uma protagonista sagaz, com um compasso moral tentador mas um tanto problemático, típico dos personagens justiceiros dessa época, como aqueles interpretados pelo Clint Eastwood e o Charles Bronson - ainda que o filme tenha um clima muito mais divertido que um Desejo de Matar ou um Dirty Harry. Acho que tem algo de especialmente inusitado e catártico em ver uma protagonista negra num filme de cinquenta anos atrás estourando os miolos de homens poderosos e violentos - tudo isso acompanhado de um soul jazz fodido, escrito e interpretado pelo Roy Ayers.
Enfim, por hoje é isso! Até a próxima!
Acabei de assistir MaXXXine no cinema. Tem tudo a ver com essa dica, já fiquei bem a fim de ver Coffin!