Oi.
Essa aqui é minha newsletter de recomendações. Toda semana, indico um filme e um disco que eu amo, entre hits e títulos menos conhecidos, para você de repente dar uma chance.
Embora minhas recomendações sejam todas genuínas e entusiasmadas, não tenho como garantir que você vá gostar delas. Aliás, a julgar pelo quão diferentes são os gostos das pessoas, diria que a chance das minhas dicas não te cativarem é até que alta. Não que isso seja ruim, até porque eu acho que a validade de uma recomendação não está necessariamente na sua qualidade, mas sim no gesto em si.
Eu sou da opinião que, na realidade algorítmica em que vivemos, recomendações feitas por seres humanos se tornaram mais valiosas do que nunca, sejam elas boas ou ruins. Se eu fosse depender só do que o YouTube me recomenda, eu ia passar o resto da vida vendo vídeo de restauração de quadros, clipes de K-Pop e ensaios de quatros horas da Contrapoints. Não que tenha alguma coisa de errado com essas coisas, mas um pouco mais de variedade é sempre bom. Outro dia, por exemplo, meu amigo me mandou uma compilação de grandes jogadas do badmington, o que não só foi irado como bagunçou um pouco a cabeça dos algoritmos, de um jeito bom. Quando eu vi, tinha varado a madrugada vendo truques de sinuca e grandes finais da Copa Mundial de Dardo.
Enfim, creio que existe algo na idiossincrasia de uma recomendação humana que um algoritmo é incapaz de reproduzir. As chances de você gostar da sugestão de um algoritmo podem até ser maiores mas, se você quiser realmente se surpreender, mais fácil pedir indicações para alguém de carne e osso.
Bom, aí vão as dicas de hoje!
Música
Parshi Vee - Formatia Parshi Vee Din Bucaresti, Vol. 1 (1992)
Recentemente eu descobri um passatempo irado e particularmente envolvente: ouvir fitas cassetes obscuras no YouTube. Fitas cassetes são um mundo a parte, com muita coisa que só existe nesse formato, como faixas de bandas independentes e pouco conhecidas, demos de artistas famosos, gravações de shows ao vivo, composições anônimas e coisas do tipo. É meio como uma deep web do universo fonográfico.
Essas fitas costumam ser especialmente imersivas, ao transmitir vibes raras que eu estou zero acostumado, com ideias musicais que jamais chegaram ao mainstream, tampouco aos meus ouvidos. Não é só uma experiência legal pela questão musical, mas também pela atmosfera um tanto arqueológica, intensificada nos eventuais chiados e ruídos da fita. Ouvir esses cassetes é um pouco como viajar no tempo, que nem quando você está na sala de espera do dentista e começa ler uma Revista Caras rasgada e desbotada de 1999, com a Silvia Pfeiffer na capa.
Entre as coisas que eu descobri na pesquisa de cassetes, uma que eu achei particularmente cativante foi a fita de uma banda romena chamada Parshi Vee, que tocava um negócio chamado muzică de mahala, gênero regional que mistura o pop da época com o folk dos Bálcãs.
Parshi Vee é um grupo formado por uma cantora, um guitarrista e um tecladista, sendo este último responsável por montar uma base eletrônica de harmonia, baixo e bateria, em uma orquestração que me remete a uma coisa quiça meio Joelma e Ximbinha, só que com um tônus um pouco mais anêmico. De qualquer forma, ainda que o som da banda seja bem distante e balcânico, tem algo no seu arranjo que me soa surpreendentemente familiar. Eu não entendo nada de romeno, mas não duvido que uma das músicas seja sobre tomar borsch, ou qualquer que seja o tacacá de Bucareste.
Gravada no começo dos anos 1990, Formatia Parshi Vee Din Bucaresti tem um som bem amador. Não que a banda mande mal; há uma musicalidade irresistível que transparece nos ótimos riffs e melodias, com composições simples e estróficas, porém cativantes. Contudo, ainda que eu não entenda nada de pós produção e mixagem, a coisa me soa super mal gravada, com os volumes desalinhados, canais mal comprimidos e uns crossfades escrotaços. A cantora, muitas vezes soterrada pelos instrumentos, soa particularmente fantasmagórica com a equalização esquisita e suas leves desafinadas. Tudo isso, entretanto, contribui pra criar uma aura maluca e envolvente pra cassete (desculpa). Ouvir esse negócio é uma bela de uma viagem.
A fita começa super bizarra, com o guitarrista tocando a marcha fúnebre do Chopin, acompanhado de sinos apocalípticos e o som de uma criança chorando, enquanto um homem declama um texto em romeno, dando a entender que você está prestes a ouvir uma banda gótica ou algo do tipo. Isso continua por um minuto ou dois, até que o mahala finalmente começa, com uma pegada totalmente contrastante ao início, em um ritmo gostoso e transante. O negócio todo tem uma hora de duração, com uns momentos um pouco repetitivos, mas também com faixas que me fizeram dar uma boa pirada. Minha canção favorita é Devlai Mo, que rola lá pelo minuto 43:40. Enfim, se você conhecer outras fitas cassetes interessantes, aceito dicas!
Filme
O Vento Será Tua Herança - Stanley Kramer (1960)
Como um roteirista que pira num roteirinho maneiro, tem poucas coisas que eu curto mais do que um bom filme de tribunal.
Embora eu nunca tenha escrito um na vida, tenho certeza que filmes de tribunal são muito difíceis de fazer. Como eles se passam quase que inteiramente dentro de uma mesma locação (no caso, o tribunal), o roteirista fica bem mais limitado do que o comum, com poucos ingredientes para usar, cabendo a ele caprichar nas falas, plot twists, dinâmicas e indicações de mise en scene. Eu acho que é meio o equivalente a um chef de cozinha fazendo uma omelette, em que você tem que brilhar só com um ovo e um pouco de manteiga.
O Vento Será Tua Herança é, na minha opinião, um dos melhores filmes de tribunal que tem por aí, em grande parte por conta do texto, mas também por conta do elenco, que conta com atuações do Fredrich March (ganhador de dois Oscars e dois Tonys), Gene Kelly (em um dos poucos papéis em que ele não sapateia) e, claro, Spencer Tracy, que é uma das grandes estrelas da história de Hollywood, além de um ator por quem eu tenho uma certa devoção. Só de olhar pra cara dele eu já fico meio emocionado, não sei explicar.
O filme é baseado numa peça, que por sua vez é baseado numa história real e famosa na história da justiça norte americana, conhecida como o “Julgamento do Macaco", quando um professor no Tennessee foi preso por ensinar darwinismo na escola, em 1925. Filmado no final dos anos 1950, O Vento Será Tua Herança é uma espécie de parábola contra o macarthismo da época, além de uma crítica ao fundamentalismo religioso. É um filme tão comovente que ele é capaz de fazer até mesmo o Paulo Kogos a acreditar em fósseis.
Apesar do caso ter sua natureza jurídica, o tribunal acaba virando palco para um debate político e filosófico sobre ciência vs. criacionismo, em discussões acaloradas e diálogos socráticos entre o advogado de defesa (Spencer Tracy) e o promotor (Fredrich March). A princípio cordiais, eles muitas vezes acabam se excedendo, de modo que boa parte do filme é basicamente dois coroas berrando pra câmera. É meio que nem aquele vídeo do velho que grita “Quero caféeeee”, só que emocionante.
Como um bom filme de tribunal, o roteiro conta com soluções ecônomicas e sagazes como, por exemplo, a ideia de que o julgamento acontece durante um período quente e ensolarado, de modo que todo mundo fica suadaço no tribunal, deixando as cenas com um clima angustiante. Outra ideia muito boa acontece em um dos pontos de virada, quando o advogado de defesa, sem mais recursos para defender seu cliente, chama o próprio promotor como testemunha. Tem também a relação entre o promotor e o advogado de defesa que, apesar de estarem em lados opostos na briga, são amigos fora da tribuna, o que dá um ótimo tempero para o conflito entre eles. Inclusive, um dos diálogos mais irados do filme trata justamente sobre essa amizade, quando o Fredrich March pergunta: “Por que, meu velho amigo, você se afastou tanto de mim?”, no que o Spencer Tracy, com a perspicácia racional do seu personagem, responde: “Todo movimento é relativo. Talvez foi você que se afastou de mim, ao permanecer parado". Porra, foda demais.
Enfim, por hoje é isso! Até a próxima!
O som da banda, principalmente o tecladinho, lembra umas gravações de seresteiros do começo dos 90, lá do Ceará. Demais!