Oi.
Essa aqui é minha newsletter de recomendações. A cada post, indico um filme e um disco que eu amo, entre hits e títulos menos conhecidos, para você de repente dar uma chance.
Enfim, aí vão as dicas de hoje!
Música
Pat Martino - Baiyina (1968)
É verdade que o fã de jazz pode ser uma figura muito insuportável. Já vi muito tiozão por aí defendendo o Brad Mehldau com a mesma ira de um adolescente k-popper falando do Jungkook. O pior é quem acha que gostar de jazz é sinal de bom gosto. Particularmente, eu acho muito triste se pautar por esse conceito tão mesquinho, vaidoso e elitista. Quem se gaba de ter bom gosto provavelmente perde altas chances de se divertir na vida, por medo de aparentar mau gosto. Aliás, como é que um gosto pode ser bom ou ruim, alguém poderia me explicar? Sim, é possível se identificar com o gosto de alguém e, nesse sentido, apreciá-lo - tipo você, leitor dessa newsletter, que eventualmente curte alguma recomendação minha. Mas gostar ou não das minhas dicas não diz absolutamente nada sobre a qualidade do meu gosto, pois gostos não são bons nem ruins. Sério, eu não tenho a menor ideia de como qualificar um gosto, objetivamente falando. Não consigo nem abstrair esse conceito. Toda vez que uma pessoa se gaba de ter “bom gosto musical”, eu me pergunto se o sujeito espera que a gente lamba a orelha dele e diga: “nossa, que tímpano saboroso!”.
Dito isso, por mais chato que o fã de jazz possa ser, ás vezes eu fico intrigado com o hater de jazz - e eles existem por aí, tanto no mundo real quanto na ficção, tipo naquela cena de Talladega Nights em que o Sacha Baron Cohen enfia um bebop no jukebox e o pessoal no bar começa a xingá-lo e ter convulsões.
Essa cena é ótima e me lembra uma experiência que tive botando um disco do Dave Holland pra tocar no carro de um amigo, mas o que há de tão odiável assim no jazz? Até que faz sentido não gostar de uns jazzes, pois ninguém é obrigado a gostar de nada nessa vida, mas odiar não é meio demais, não? Jazz, assim como qualquer outro tipo de música, é nada mais, nada menos que um barulho, uma vibração no ar, algo que, na pior das hipóteses, pode bater estranho nos nossos ouvidos, mas não a ponto de causar um sentimento tão azedo, certo? Eu entendo odiar uma música com a qual você tenha fortes discordâncias ideológicas, tipo, uma canção feita por IA, ou o novo disco do Kanye West que, além de ser muito pior que o resto da sua obra, é nazista. Também entenderia odiar uma música que mexa com seus traumas, por exemplo, vai ver seus pais morreram durante um show do Nelson Ned e, por conta disso, você tem uma crise nervosa sempre que alguém canta mas tudo passa, tudo paaaaaassará. Fora isso, odiar um estilo de música me parece um sentimento muito exagerado - e isso vale para quem odeia k-pop, funk, sertanejo, ou o que quer que seja. No geral, acho estranho odiar música. Uma reação gratuita e exagerada, meio que nem odiar nuvens ou a cor laranja.
A verdade é que eu acho jazz, em teoria, especialmente difícil de odiar, muito por conta da sua versatilidade. Há jazz para todos os gostos. Fazendo uma certa generalização, eu diria que, na essência do jazz, existem poucos pilares que fundam sua estrutura: o swing, o improviso, um certo apreço pela dissonância, etc e tal. De resto, tudo meio que vale, o que abre porta para infindáveis sub-gêneros. Claro, o jazz, como qualquer estilo, tem um contexto histórico e é cheio de convenções - da progressão II-V-I ao shuffle beat -, mas nenhum instrumento, acorde, ritmo ou melodia são proibidos. Existe jazz com música brasileira, jazz com música japonesa, jazz misturado com rock, jazz com EDM, jazz de dois minutos, jazz de uma hora e meia, jazz barulhento, jazz calminho e tudo mais que você possa imaginar. É um gênero que, de certo modo, está sempre desafiando as suas próprias definições. Como diria Louis Armstrong, quando perguntaram para ele “o que é jazz?”: se você teve que perguntar, nunca irá saber!
Baiyina é um disco de 1968, do consagrado guitarrista Pat Martino, que mistura jazz com a música hindustani, gênero do norte da Índia de tradição hindu e muçulmana que, tal qual o jazz, trabalha muito com a improvisação. O álbum tem também um tempero lisérgico, típico dos anos 1960, e possui um subtítulo bastante apropriado: A psychedelic excursion through the magical mysteries of the Koran (uma excursão psicodélica pelos mistérios mágicos do Corão). Realmente, ouvir esse disco te deixa com vontade de tomar um peyote e entrar pelado numa mesquita em Islamabad.
Acompanhado de bateria, flauta, saxofone, baixo, tabla e tambura, a guitarra de Pat Martino faz uma ótima liga entre todos os instrumentos, com um timbre bem jazzístico por um lado mas, por outro, com uma textura que, ao menos para mim, remete, de fato, ao espiritual. Todas as faixas são compridas, com longas sessões de improvisações, acompanhadas por bases harmônicas repetitivas, como um mantra, dando a você uma vontade esquisita de meditar dançando. Um disco muito fácil de amar e difícil de odiar.
Filme
A Carta - William Wyler (1940)
A Carta, de William Wyler, é um desses filmes que não recorrem a nenhum tipo de preliminar. Ele começa bem intenso, com a Bette Davis saindo de uma casa com um revólver nas mãos, enquanto mata um homem com uma saraivada de tiros à queima-roupa. O homem cai duro na escada e a câmera, então, faz um lento travelling no rosto da atriz, que solta a arma no chão, consternada. Para o espectador, não resta nada a não ser falar: “puta que o pariu, lá vem um belo de um filmão por aí!”. Muito diferente de quando eu comecei a ver Oppenheimer e pensei: “Nossa, vão ser mais três horas dessa merda?”.
O filme segue com a personagem de Bette Davis contando ao marido o que aconteceu: segundo ela, o suposto crime foi, na verdade, um ato de legítima defesa. Contudo, alguns indícios revelarão que há um gato nessa tuba - entre eles, uma carta. E é daí que vem o nome do filme, ao contrário de Elefante do Gus Van Sant, que não tem um caralho de um elefante. Ou tipo quando eu vi A Hora do Rush e fiquei esperando ao menos uma cena em alguma avenida engarrafada, mas tudo o que rolou foram noventa minutos de faux-pas culturais entre um chinês e um afro-americano. Na época eu curti o filme, mas algo me diz que ele envelheceu mal. Aliás, alguém viu A Hora do Rush recentemente? Como foi essa experiência?
Enfim, voltando para A Carta: o filme é irado, a direção de William Wyler impecável mas, sinceramente, o que faz ele brilhar é a Bette Davis. Na newsletter de umas semanas atrás demonstrei minha admiração pela Joan Crawford, mas sua contemporânea Bette Davis é muito absurda e também merece uma bela de uma pagação de pau. As duas, inclusive, mantiveram uma relação conturbada de admiração e ódio, que até virou um filme com a Susan Sarandon e a Jessica Lange. Ao longo de suas carreiras, as atrizes trocaram muitas farpas, alguns elogios e eventualmente mostraram uma química irada quando contracenaram em What Ever Happened to Baby Jane?, em uma união tão surpreendente quanto aquela vez em que o Faustão e o Gugu se entrevistaram ao vivo nos seus respectivos programas.
Uma coisa que mencionei sobre a Joan Crawford naquele newsletter também vale para a Bette Davis que, tal qual a colega, tinha um olhar muito intenso e cativante. No caso dela, isso até virou uma música: aquele hit dos anos 1980, Bette Davis Eyes. Imagina se alguém fizesse uma música sobre seu atributo mais marcante, que doideira? A Neurose Obsessiva e Por Vezes Debilitante do Suza. Não sei se eu ia curtir.
Bom, por hoje é isso. Até a próxima!
Você tem bom gosto. Não por elitismo. Mas porque da para perceber que você presta atenção nos mínimos detalhes e que aprecia a arte com amor. Ler seus textos me ajuda a ver certos filmes/álbuns de outra forma. É ótimo ter suas recomendações!